30 de Setembro de 2025

Entrevista a João Camarão: “Portugal devia olhar para os países de sucesso” | Jornal de Negócios

No âmbito da parceria entre o Conselho da Diáspora Portuguesa e o Negócios, João Camarão, Administrador para as áreas de Risco em Fintech e Private Equity, e Conselheiro do Núcleo Regional do Médio Oriente, Índia e Egito, foi entrevistado para o Jornal de Negócios, onde abordou o seu percurso profissional e identificou oportunidades competitivas para Portugal, a sua economia, empresas e empresários em geral.

1 – O QUE O LEVOU A SAIR DE PORTUGAL?

Comecei a considerar seriamente a possibilidade de sair de Portugal em 2011, durante o auge da crise da dívida soberana que afetava profundamente a zona Euro, tendo conseguido sair em 2012. Nessa altura, existia uma pressão muito grande que retirou o poder de compra a toda a população e, com todas as medidas implementadas pela Troika, senti que seria melhor sair do país e emigrar para o Qatar, país que tinha recentemente sido anunciado como o anfitrião do Mundial de Futebol de 2022, o que me pareceu uma escolha estratégica e promissora para o futuro.

No entanto, a minha saída deu-me a oportunidade de implementar uma área de risco e uma equipa nova de raiz, num Banco que se transformou num Banco Global e com presença em 4 continentes.

2 – QUE VANTAGENS OU DESVANTAGENS LHE TROUXE O FACTO DE SER PORTUGUÊS?

Creio que existe alguma vantagem em ser europeu, mas não especificamente português, até porque Portugal, na altura, tinha relações muito reduzidas com o Qatar, não havendo sequer uma embaixada. Aqui encontrei uma cultura de meritocracia, onde todas as pessoas têm as mesmas oportunidades, independentemente da nacionalidade, e é assim que deveria ser. Na área da Banca, que é a minha área, vemos muitos profissionais em cargos muito relevantes, provenientes de países como a Índia, o Paquistão, entre outros, o que não é comum nos outros países.

Do meu ponto de vista, fui crescendo de uma forma natural e fazendo o meu caminho integrando-me no país, cultura e respeitando as regras locais.

Como curiosidade, acho que sentimos todos alguma vantagem quando dizemos que somos portugueses, estando imediatamente associados ao Cristiano Ronaldo – deu jeito para passar algumas vezes à frente em aeroportos (risos).

3 – QUE OBSTÁCULOS TEVE DE SUPERAR E COMO O FEZ?

Estabelecer-me no Qatar foi quase um começar de uma vida nova. Não conhecia ninguém, mas o mais difícil foi a componente cultural, pois em 2012 os países do Golfo eram ainda mais conservadores do que nos dias de hoje. Por exemplo, eu precisava de uma autorização do meu empregador para poder sair do país, tendo uma vez perdido um voo por ter havido um erro informático.

Atualmente, isso já foi ultrapassado e, apesar de ainda haver muito conservadorismo em algumas zonas, hoje em dia o choque cultural para quem emigra para esta zona é francamente menor.

A comunicação com as mulheres era outro desafio – tinha sempre muitas dúvidas sobre como falar com elas: tinha duas mulheres locais a reportar a mim e não sabia muito bem como abordá-las; mas felizmente correu tudo bem e esse desafio foi ultrapassado.

Acho que nós, portugueses, temos uma excelente capacidade de adaptação e daí termos uma diáspora tão representativa e bem-sucedida. Felizmente, tive oportunidade de viajar pelo mundo e encontrei portugueses em sítios muito inesperados: como, por exemplo, numa noite de fados no Sudão do Sul.

4 – O QUE MAIS ADMIRA NO PAÍS EM QUE ESTÁ?

Neste momento, estou nos Emirados Árabes Unidos e, sem dúvida, gostaria de destacar a modernidade e eficiência existentes, tudo assente em estratégias de longo prazo. De uma forma geral, diria que os Emirados Árabes Unidos, o Qatar e agora a Arábia Saudita, estão já há alguns anos numa trajetória de desenvolvimento muito interessante; aliás, o desenvolvimento diplomático com vários países ocidentais acentua o seu crescimento em diversas áreas de atuação.

O mercado do Golfo é, senão o mais, um dos mais competitivos do mundo, uma vez que todos os players internacionais têm uma presença significativa, e isso cria uma dinâmica empresarial incrível e a necessidade constante de agregar valor.

5 – O QUE MAIS ADMIRA NA EMPRESA / ORGANIZAÇÃO EM QUE ESTÁ?

Acabei de me mudar para um Banco relativamente novo que trabalha na área digital; ainda estamos numa fase inicial e ainda há muito a fazer. Acredito que o ADN deste Banco está profundamente ligado à preocupação com as pessoas e com a comunidade em geral, promovendo a inclusão financeira ao oferecer acesso a serviços financeiros a um nicho pouco explorado na região do Golfo –aspetos esses que são muito convergentes com a minha forma de avaliar a Banca em geral.

Neste momento, estamos também a desenvolver duas entidades na área dos ativos digitais, tendo recebido as necessárias licenças, e tendo igualmente lançado a primeira Stablecoin nos Emirados Árabes Unidos. Este novo desenvolvimento visa acelerar o processo de descentralização das instituições

financeiras, oferecendo aos clientes acesso a um mercado emergente que ainda possui um grande potencial de crescimento e inovação nos Emirados e no Médio Oriente em geral.

6 – QUE RECOMENDAÇÕES DARIA A PORTUGAL E AOS SEUS EMPRESÁRIOS E GESTORES?

Há muita coisa a dizer a esse respeito e que certamente daria uma nova entrevista. Creio que, em Portugal, os empresários e gestores têm muitos desafios com a burocracia fiscal e a regulação, o que impede sermos competitivos de uma forma geral.

Diria que devem focar-se nos temas estratégicos, como energias renováveis ou tecnologia e inovação, e criar parcerias internacionais, pois o nosso mercado ainda é muito periférico. Promover uma cultura de retenção dos seus talentos e de criação de valor dos seus produtos e serviços.

7 – EM QUE SETORES DO PAÍS ONDE VIVE PODERÃO AS EMPRESAS PORTUGUESAS ENCONTRAR CLIENTES?

Sem dúvida na tecnologia, agora com um foco muito grande em Inteligência Artificial, Banca e serviços financeiros e cuidados de saúde.

O mercado do Golfo é relativamente complicado de entrar, mas é um mercado com grande liquidez e perspetiva de progresso a curto, médio e longo prazo e com total interesse em fazer negócio, desde que com modelos de negócio bem articulados.

8 – EM QUE SETORES DE PORTUGAL PODERIAM AS EMPRESAS DO PAÍS ONDE ESTÁ QUERER INVESTIR?

Destacaria o mercado imobiliário, sobretudo o de luxo, energias renováveis e turismo, sendo que já existe algum investimento árabe nestas áreas.

Aqui na região, mesmo através dos fundos soberanos, existe uma grande diversificação de investimento nos seus ativos sob gestão, e creio que Portugal tem feito um trabalho interessante ao reforçar a aproximação à região do Golfo, com diversos voos e companhias a voar para Portugal, o que aproxima bastante dos investidores.

9 – QUAL A VANTAGEM COMPETITIVA DO PAÍS EM QUE ESTÁ QUE PODERIA SER REPLICADA EM PORTUGAL?

A modernização e o planeamento urbano: por exemplo, destacaria a forma como o trânsito está organizado em Abu Dhabi, apesar de uma relativa densidade populacional, rapidez e eficiência governamental. Por exemplo, consegui o meu visto de trabalho em menos de uma semana após submeter os documentos necessários e comprovativos laborais e financeiros. Acredito que Portugal deveria olhar para os países de sucesso para perceber que se pode viver melhor e ter um país inovador a funcionar. Países como os Emirados Árabes Unidos, Qatar ou Singapura são excelentes exemplos.

A cultura profissional no Golfo é de que as coisas têm de ser decididas, executadas rapidamente e bem feitas sempre com elevada produtividade.

10 – PENSA VOLTAR PARA PORTUGAL? PORQUÊ?

Não no curto prazo, i.e., a 3 anos, uma vez que, além do trabalho em Banca, tenho um projeto pessoal fora de Portugal e parece-me que Portugal precisa de uma forte reforma em diversas áreas para atrair o regresso dos portugueses.

No entanto, a longo prazo, gostaria de poder regressar e apoiar Portugal no seu desenvolvimento futuro e poder partilhar a experiência profissional adquirida na Europa, África, Médio Oriente e Ásia.