7 de Outubro de 2025

Entrevista a Rui Gonçalves: “Uma cultura de planeamento podia beneficiar Portugal” | Jornal de Negócios

No âmbito da parceria entre o Conselho da Diáspora Portuguesa e o Negócios, Rui Gonçalves, Diretor Adjunto na Singapore Food Agency, e Conselheiro do Núcleo Regional da Ásia, foi entrevistado para o Jornal de Negócios, onde abordou o seu percurso profissional e identificou oportunidades competitivas para Portugal, a sua economia, empresas e empresários em geral.

1 – O QUE O LEVOU A SAIR DE PORTUGAL?

Foram várias razões, entre as quais a curiosidade e a vontade de me expor a um mercado de trabalho mais dinâmico e exigente, onde pudesse encontrar maiores oportunidades de crescimento pessoal e profissional.

2 – QUE VANTAGENS OU DESVANTAGENS LHE TROUXE O FACTO DE SER PORTUGUÊS?

Ser português tem sido, sem dúvida, uma vantagem. Os portugueses são geralmente bem recebidos em muitos contextos internacionais, e no Sudeste Asiático existe um legado histórico que desperta simpatia e respeito. Portugal é visto com apreço, e confesso que ser conterrâneo do Cristiano Ronaldo ajudou, mais do que uma vez, a quebrar o gelo em diversas situações sociais. Às vezes sinto-me quase uma celebridade por associação!

3 – QUE OBSTÁCULOS TEVE DE SUPERAR E COMO O FEZ?

A mudança de país e de contexto profissional acarreta sempre desafios, especialmente relacionados com a burocracia — desde vistos e autorizações de residência, à escolarização dos filhos e adaptação a novas normas administrativas. Contudo, acredito que os portugueses possuem uma grande capacidade de adaptação e uma atitude pragmática que nos permite “desenrascar” e encontrar soluções. Na Singapore Food Agency (SFA), somos apenas três estrangeiros num universo de mais de 700 colaboradores, o que naturalmente implica desafios culturais, sobretudo na comunicação, no trabalho em equipa e na gestão de expectativas. Com o tempo, fui aprendendo a adaptar-me, mantendo a autenticidade, mas ajustando comportamentos. É um processo contínuo, exigente, mas profundamente enriquecedor.

4 – O QUE MAIS ADMIRA NO PAÍS EM QUE ESTÁ?

O que mais me impressiona em Singapura é a conjugação única entre segurança, eficiência e multiculturalismo. A segurança é notável, com índices de criminalidade extremamente baixos. A eficiência é visível a todos os níveis: dos transportes públicos aos serviços administrativos. Já o multiculturalismo contribui para uma sociedade coesa e dinâmica, onde diferentes grupos étnicos e religiosos convivem de forma harmoniosa. Essa diversidade gera inovação, resiliência e uma mentalidade aberta ao mundo.

5 – O QUE MAIS ADMIRA NA EMPRESA / ORGANIZAÇÃO EM QUE ESTÁ?

Trabalhar na Singapore Food Agency (SFA), entidade com competências equivalentes às de vários organismos públicos portugueses — como a DGAV, DGRM, ASAE e Ministério da Agricultura —, é uma experiência profissional extremamente gratificante. Tenho a oportunidade de participar na definição da estratégia nacional de produção aquícola, coordenando desde o financiamento de projetos de investigação até ao ordenamento do espaço marítimo e terrestre destinado à aquicultura. A articulação entre diferentes agências governamentais e o setor privado é muito eficaz, e a minha experiência na indústria tem sido valiosa para facilitar esta ponte. A SFA impressiona pelo elevado grau de planeamento estratégico, pela visão a longo prazo e pelo forte sentido de missão coletiva. Estas características são, sem dúvida, lições que considero úteis e replicáveis em Portugal.

6 – QUE RECOMENDAÇÕES DARIA A PORTUGAL E AOS SEUS EMPRESÁRIOS E GESTORES?

Portugal pode tirar importantes lições da abordagem estratégica de Singapura, sobretudo nas áreas agroalimentar e de gestão da água. Com uma população de cerca de 5,9 milhões de pessoas — metade da portuguesa — e uma densidade populacional de 8.000 hab./km² (face aos 112 hab./km² de Portugal), Singapura enfrenta limitações territoriais e recursos naturais escassos.

Ainda assim, ocupa hoje o 28.º lugar no Global Food Security Index (2023), com uma das rendas per capita mais elevadas do mundo. Paradoxalmente, importa cerca de 90% dos seus alimentos, o que levou o país a investir em sistemas agrícolas e aquícolas altamente tecnológicos e resilientes, adaptados ao contexto urbano, como a hidroponia vertical e a aquicultura intensiva.

Portugal, apesar de um elevado consumo de pescado, por exemplo (53,57 kg per capita vs. 23,04 kg na média da UE), continua a depender fortemente da pesca extrativa. A aquicultura representa apenas cerca de 20,9 mil toneladas num total nacional de 160 mil. Isso torna o país vulnerável às flutuações externas e reforça a necessidade de reforçar a produção local de forma sustentável.

Além disso, Portugal tem condições favoráveis — acesso a energia limpa, localização estratégica, recursos naturais valiosos —, mas carece de uma estratégia integrada e orientada para o futuro que una talento, conhecimento académico e investimento. É urgente reforçar a resiliência da produção primária nacional, à semelhança do que Singapura tem feito com notável sucesso.

7 – EM QUE SETORES DO PAÍS ONDE VIVE PODERÃO AS EMPRESAS PORTUGUESAS ENCONTRAR CLIENTES?

O setor agroalimentar é uma oportunidade clara. Singapura, altamente urbanizada, valoriza a conveniência e qualidade nos alimentos. Existe um elevado consumo de refeições fora de casa e, nas refeições em casa, privilegiam-se opções práticas, saudáveis e prontas a consumir. Empresas portuguesas com soluções alimentares inovadoras e de qualidade encontram aqui um mercado atrativo e exigente, aberto à diferenciação.

8 – EM QUE SETORES DE PORTUGAL PODERIAM AS EMPRESAS DO PAÍS ONDE ESTÁ QUERER INVESTIR?

Singapura procura resolver os seus desafios estruturais com tecnologia e planeamento estratégico. Identifico três áreas onde empresas singapurenses podem aportar valor significativo a Portugal:

Gestão da água: Singapura reduziu drasticamente a sua dependência externa, recorrendo a tecnologias como a dessalinização, o reaproveitamento de águas residuais (NEWater) e a eficiência na distribuição. Portugal, que enfrenta crescente escassez hídrica, beneficiaria enormemente desta experiência.

Produção alimentar resiliente: A experiência de Singapura em desenvolver cadeias produtivas robustas, mesmo com recursos limitados, é um modelo aplicável à realidade portuguesa. Em aquicultura, Portugal tem grande potencial, mas falta uma visão estratégica de longo prazo.

Digitalização e automação: A experiência de Singapura em smart farming, inteligência artificial e cadeias logísticas eficientes pode contribuir para modernizar e tornar os setores primários portugueses mais competitivos.

9 – QUAL A VANTAGEM COMPETITIVA DO PAÍS EM QUE ESTÁ QUE PODERIA SER REPLICADA EM PORTUGAL?

O principal trunfo de Singapura é a sua capacidade de planeamento estratégico de longo prazo, sustentada por uma administração pública eficiente, transparente e com baixos níveis de corrupção. Esta abordagem integrada, aliada a um ecossistema favorável à inovação e ao investimento, cria as condições ideais para o desenvolvimento sustentável. Portugal poderia beneficiar muito ao adotar uma cultura semelhante de planeamento estruturado, com metas claras e mecanismos de execução eficazes.

10 – PENSA VOLTAR PARA PORTUGAL? PORQUÊ?

Sim, regressar a Portugal está nos meus planos. Sou profundamente ligado ao meu país, à sua cultura e à minha família. Gostaria muito de voltar num momento alto da minha carreira, para contribuir de forma ativa e relevante para o desenvolvimento nacional, particularmente na minha área de especialização. No entanto, o retorno depende de fatores pessoais e profissionais. Portugal ainda enfrenta desafios em termos de atratividade e retenção de talento especializado, o que, por vezes, gera frustração. Ainda assim, mantenho o otimismo e a esperança de que novas oportunidades surjam, que me permitam regressar com impacto e propósito.