12 de Março de 2024

Entrevista com João Félix da Silva: “Portugal pode vir a ser o país das energias renováveis”

Portugueses que se destacam lá fora ajudam a descobrir onde estão oportunidades de negócios e que tipo de empresas e atividades o país pode atrair. Uma iniciativa que junta o Negócios e o Conselho da Diáspora Portuguesa.

1- O que o levou a sair de Portugal?

Estamos no início dos anos 70, nas Caldas da Rainha, e os meus pais querem, mais que uma educação académica para os filhos, também uma educação cívica. Esta sua convicção leva-os a enviar-me sozinho com 15 anos para a Bélgica para continuar os estudos e descobrir o que viver em democracia quer dizer.

Dois anos depois o meu pai faleceu, tornando-se difícil, para a minha família, continuar a financiar os meus estudos no estrangeiro. Sendo um excelente aluno, as autoridades escolares belgas decidiram apoiar-me para continuar os meus estudos superiores. Para viver, estudei e trabalhei ao mesmo tempo, razão por a qual o meu CV começa com um posto de cozinheiro numa grande empresa internacional de hamburgers.

No mesmo curso, estudava uma rapariga belga que foi a primeira engenheira em eletromecânica diplomada da Bélgica. Essa rapariga é desde há 42 anos a minha esposa.

2- Que vantagens ou desvantagens lhe trouxe o facto de ser Português?

Na época, Portugal não fazia parte do “mercado comum”. Na Bélgica, havia dois tipos de emigração portuguesa: os refugiados políticos e os trabalhadores das minas. Essas duas populações conviviam e eram bem aceites pela população belga. Mesmo que Portugal fosse um país exótico, na época, para a população belga, a capacidade de integração dos portugueses e o bom acolhimento dos locais facilitaram-me a vida.

3- Que obstáculos teve de superar e como o fez?

O desconhecimento da língua e o facto de estar longe da família aos 15 anos, foram obstáculos que superei graças ao bom acolhimento do povo belga, ao apoio familiar à distância e a uma imensa força de vontade de fazer da expatriação um êxito pessoal e familiar.

A entrada no mercado de trabalho foi um pouco mais complicada, mas o casamento facilitou as coisas para poder residir no país.

Na vida profissional não houve qualquer obstáculo e felizmente pude evoluir no mundo industrial europeu a partir da Bélgica. A evolução profissional nas empresas privadas internacionais é basicamente ligada ao mérito e aos resultados obtidos no cargo.

4- O que mais admira no país onde está?

O senso do consenso e o humor belga.

Mas, para além disso, este país dá a possibilidade a todos de terem acesso à saúde, à educação e à cultura. Nem tudo é perfeito, mas penso que pode ser um exemplo para muitos países.

A Bélgica também tem confiança nos jovens diplomados quando entram na vida ativa. Estes jovens não precisam de fazer “estágios” de integração profissional e obtêm salários que lhes permitem ser independentes das famílias. E a Juventude é o futuro do Mundo.

A diplomacia belga, tal como a portuguesa, é reconhecida pela sua capacidade de encontrar soluções e ocupa cargos importantes nas diferentes organizações internacionais. Isto representa um trunfo para o desenvolvimento de atividades comerciais a nível internacional.

5- O que mais admira na empresa ou organização onde está?

A John Cockerill é um grupo familiar que existe há 200 anos. Desde então, este grupo de engenharia conheceu altos e baixos, mas sempre sobreviveu graças ao espírito de inovação e à sua visão empreendedora, tentando sempre responder às necessidades do amanhã.

Foi no nosso grupo que se fabricou a primeira locomotiva a vapor da Europa Continental, assim como o primeiro motor feito por Rudolf Diesel, curiosamente para o qual os nossos engenheiros não previram um futuro brilhante. Como se vê, nem sempre é sensato dar crédito aos engenheiros.

Hoje, suportados por mais de 6000 talentos, com uma implantação em 24 países e nos 5 continentes, estamos presentes nas áreas da engenharia, da indústria siderúrgica, das centrais solares, da biometanisação, da manutenção industrial, e somos um dos maiores grupos mundiais a construir eletrolisadores para produzir hidrogénio verde.

Confirmamos assim que continuamos a apostar na Visão e na Inovação Tecnológica para garantir a perenidade da nossa empresa.

6- Que recomendações daria a Portugal e aos seus empresários e gestores?

Portugal não pode ser só um país de turismo; temos que desenvolver atividades industriais ou de serviços com valor acrescentado. Duas condições são necessárias: um espírito empreendedor e talentos para desenvolverem as atividades. Para reter os talentos, que são bem formados nas escolas portuguesas, desde escolas profissionais a universidades, será preciso aumentar os salários, evitando-se a fuga de mão de obra qualificada para o estrangeiro. Para aumentar salários será preciso desenvolver atividades com maior valor acrescentado, e assim se fecha o círculo virtuoso. No que respeita às áreas ou sectores a desenvolver, penso que Portugal pode vir a ser o país das energias renováveis e das novas tecnologias, posicionando-se como exportador nestes setores.

7- Em que setores do país onde vive poderiam as empresas portuguesas encontrar clientes?

Para complementar a energia e as novas tecnologias, como referido, penso que os produtos alimentares e vinícolas poderiam ser também um segmento de maior exportação. Quanto aos serviços, tendo em conta a qualidade dos nossos equipamentos informáticos e a qualidade dos nossos talentos, os centros de serviço tecnológicos ou administrativos poderiam ser um eixo de desenvolvimento.

8- Em que setores de Portugal poderiam as empresas do país onde vive querer investir?

Com toda a certeza, em toda a indústria associada às energias renováveis e às novas tecnologias. Portugal já não é hoje considerado um país “low cost”. Portanto, qualquer investimento a ser feito em Portugal por empresas estrangeiras, sê-lo-á pela vantagem tecnológica ou de mercado que o país lhes possa dar.

9- Qual a vantagem competitiva do país em que vive que poderia ser replicada em Portugal?

Uma das vantagens competitivas da Bélgica é que consegue reter os talentos, porque o nível de vida médio é correto, e o acesso à educação e à saúde são garantidos. A competitividade dum país vai passar pelo seu footprint de carbono, e, neste contexto, os incentivos para investir nos isolamentos das habitações, assim como na produção local de energia verde nas casas particulares, são também de salientar. E, last but not least, fomentar as atividades industriais e de serviços em produtos e serviços de “nicho” é também uma das vantagens belgas. Para quem não acreditasse, bastaria pensar na cerveja e nos chocolates belgas, como produtos que provam o acerto desta estratégia.

E, por último, a taxa de produtividade belga é muito elevada – isto devido a altos níveis de automatização nos postos de trabalho operacionais e de serviços. Este facto permite manter a competitividade das empresas, mesmo com salários altos em relação ao resto da Europa.

10- Pensa voltar a Portugal? Porquê?

Não. Embora as minhas raízes estejam neste pedaço de terra e nesta gente que tanto aprecio, a família é imprescindível, e os netos são a luz que me mantém no caminho da vida. Portanto, vou continuar, com a minha esposa Claudine, a partilhar o nosso tempo entre os dois países que estão nos nossos corações.