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22 de Agosto de 2017

O Gestor que faz do perigo a sua profissão

Entrevista a António Gonçalves, Director Internacional da ES-KO e membro do Conselho da Diáspora Portuguesa – Revista Visão, edição 17 de Agosto 2017.
Quando há uma guerra, há alguém que se aproxima da linha da frente sem disparar uma arma. Quando há uma catástrofe natural, há alguém que avança para ajudar as forças de emergência e de segurança a cuidar dos vivos. Em terramotos como os do Haiti ou do Paquistão, em conflitos como os do Mali ou do Iraque, os médicos e polícias precisam de ser alimentados, os militares precisam de água potável, as populações precisam de um teto para dormir. A logística em locais de difícil acesso, ou em situações politicamente instáveis, não é feita só de ajuda humanitária. Também é um negócio. Empresas especializadas fornecem todos os serviços a quem já está no terreno, satisfazendo- lhes as necessidades mais básicas. Montam acampamentos, instalam os equipamentos, fornecem as refeições, cuidam da limpeza e das roupas, recolhem e tratam o lixo. Por vezes, em áreas maiores do que o Mónaco. Estas empresas são também uma garantia de sobrevivência para os cientistas, que passam meses numa missão no Círculo Polar Ártico, e para os trabalhadores que exploram petróleo e constroem estradas no Médio Oriente. Mas, em tempos de paz ou de guerra, as experiências são sempre próximas do limite, como as que têm sido vividas por um gestor português que fez dos locais remotos o seu modo de vida nas últimas três décadas. António Gonçalves, 56 anos, conheceu muitos cenários de tragédia humana, ambiental ou natural, desde que em 1985 saiu da Escola de Hotelaria do Porto, recém-licenciado em Gestão Hoteleira. O seu cartão de visita apresenta-o como diretor internacional de “uma das maiores multinacionais do mundo na área de logística e instalação de acampamentos em localizações de difícil acesso e situações políticas instáveis”, tendo as Nações Unidas, a NATO, diversas ONGs e governos como clientes. Mas a sua vida é muito mais do que isso.
BARRICADAS NA RÚSSIA
Ao serviço de uma empresa francesa de catering (fornecimento de refeições), esteve em Moçambique, Líbia e Angola, até que surgiu o desafio de abrir uma filial de uma empresa portuguesa na Rússia. “Em 1993, quando cheguei a Moscovo, Boris Ieltsin estava a bombardear o Parlamento. Todos os dias ia a pé para o escritório, através das barricadas”, conta António Gonçalves. Foi nessa altura que percebeu que “ser português é um privilégio”. Em momentos de tensão, “um passaporte português é um passaporte neutro, sem conotação negativa. É uma vantagem”, garante. Hoje, recorda a experiência como uma oportunidade única para se despir dos preconceitos ocidentais que levava na bagagem para Moscovo. “A descoberta da Rússia foi uma aventura. Trabalhávamos em onze fusos horários diferentes, para empresas mineiras e petrolíferas que estavam a entrar em locais verdadeiramente remotos como a Sibéria, Círculo Polar Ártico, Cazaquistão, Turquemenistão, Azerbaijão, mar Cáspio.” Um ano depois da chegada à Rússia, a empresa que dirigia foi contratada pelo Banco Mundial para assegurar a logística de centenas de pessoas que participavam na limpeza de um derrame de petróleo na região de Usinsk, no Círculo Polar Ártico. “Tivemos de criar condições de transporte, alojamento, alimentação e apoio médico numa região particularmente isolada do ‘grande Norte’, assolada por nevões, ventos fortes e um frio intenso”, relata. O inverno tinha começado e a tarefa não era fácil. Para piorar a situação, a máfia russa tentou chantageá-los. “Pedimos intervenção do Ministério russo do Interior, que rapidamente garantiu que o nosso trabalho decorresse sem pressões.” Seguiu-se o Brasil e um curto regresso a Portugal, por razões familiares, mas, em 2003, António Gonçalves estava de volta ao epicentro de um conflito mundial – a guerra do Iraque. Dessa vez, a convite de uma empresa saudita que tinha sido subcontratada, para fornecer as forças armadas da coligação, pela empresa que detinha o monopólio da logística – a KBR, subsidiária da Halliburton, do vice-presidente Dick Cheney, uma das empresas que mais lucraram com a decisão dos EUA em atacar o regime de Saddam Hussein e que, anos depois, foi denunciada por corrupção na Nigéria.
DEBAIXO DE FOGO NO IRAQUE
Polémicas à parte, “a empresa cresceu vertiginosamente e em 2006 já tínhamos 4 mil funcionários no Iraque. Quatro anos depois, chegámos a ter 12 mil”, prossegue o gestor português. “No pico da guerra, servimos mais de 300 mil refeições diárias a mais de 100 mil soldados”, acrescenta. A expansão fez-se pela oferta do pacote completo de serviços. “Passámos a construir as bases para os militares.” A empresa expandiu-se de tal maneira que, um ano depois da chegada, António Gonçalves foi “discretamente contactado” pelos serviços secretos norte-americanos para erguer uma pequena base no deserto, no Sul do país, para que cientistas forenses, advogados, juízes e trabalhadores procedessem à abertura de valas comuns onde os cadáveres dos curdos das aldeias dizimadas estavam enterrados. O gestor refere que só teve acesso às coordenadas do local mediante “juramento de honra, escrito e verbal”. A missão contribuiu para juntar provas à acusação de crimes contra a Humanidade dirigida contra Saddam Hussein. O dia a dia em locais de conflito, político ou militar, é feito de momentos de muita tensão, mas também de episódios hilariantes. Em 2006, António Gonçalves ficou sob um ataque de metralhadoras na zona verde, em Bagdade. “Quando começam os disparos, toca o telefone, e eu, atrás de uma proteção de betão, atendi sem saber quem estava do outro lado. Os norte- americanos interferiam nas comunicações e não sabíamos quem nos telefonava. Era a minha mulher, grávida, que já estava em Portugal à espera que o nosso terceiro filho nascesse. Eu devia juntar-me a ela dentro de duas semanas para assistir ao parto. Mas ela telefona-me a dizer que o parto podia ser antecipado, e queria saber se eu me importava de não estar presente. Disse-lhe que não, com a voz mais normal possível, mas ela ouvia as balas. Para a tranquilizar, disse-lhe que as tropas estavam a treinar.” [Risos.] Não será por acaso que os franceses designam o negócio da logística em locais remotos como l’hôtellerie de l’extrême.
PREPARAR O TERRENO NO MALI
“Ainda não encontrei uma única boa razão para começar uma guerra. Faz-se muito mais dinheiro na paz”, diz António Gonçalves, enquanto acaba de relatar uma aventura para começar a contar outra. Nos últimos dias de 2012, já ao serviço de uma empresa alemã, montou em tempo recorde o apoio logístico para os militares franceses que se preparavam para intervir no Mali dentro de semanas. Numa corrida contra o tempo, foi necessário assegurar alojamento, alimentação, tratamento da água, recolha e tratamento do lixo, manutenção, lavandaria, limpeza, cuidados médicos. “Num ambiente de ‘cortar à faca’, fizemos o levantamento do terreno em Bamako e no Norte do país. Mobilizámos o pessoal, instalámos os equipamentos, e garantimos tudo a tempo.” A intervenção militar francesa, conhecida por Operação Serval, teve início a 12 de janeiro do ano seguinte. Em 2014, o gestor viu uma oportunidade de negócio e tentou criar uma empresa de capitais nacionais nesta área. “Sou um gestor, não sou um capitalista nem um empreendedor”, reconhece. Manteve conversações com o empresário Américo Amorim, recentemente falecido. “Mostrou-se muito interessado, mas já estava a abandonar a liderança dos negócios.” Uma das empresas identificadas como alvo, para investir e transformar, foi a ES-KO, fundada há 60 anos por uma família genovesa, com sede no Mónaco. O gestor acabou por avançar sozinho: “A segunda geração precisava de atualizar as áreas de negócio e de preparar os próximos 60 anos. Apresentei o meu projeto ao filho do fundador, ele apresentou-me o dele, e decidimos fazer as coisas em conjunto.” Hoje, António Gonçalves é diretor internacional da ES-KO, uma multinacional que emprega mais de 2 mil pessoas e atua no Sudão, Congo, Mali, Burkina Faso, Uganda, Senegal, Somália, Sara Ocidental/Marrocos, Angola, Haiti, Chipre, Afeganistão e Iraque. Antes da chegada do gestor português, a ES-KO quase só trabalhava para a ONU, assegurando a logística para os capacetes azuis, a força de paz da organização. “Estamos a falar de 20 mil a 30 mil soldados espalhados por locais isolados do Congo, onde conseguimos chegar de forma rotineira e segura, com padrões de qualidade internacionais.” Debaixo da sua orientação, a empresa alargou a oferta a outras áreas. A recuperação da barragem de Mossul está a ser feita com o apoio logístico da ES-KO. “Construímos as bases para os militares, que protegem a barragem, e para os trabalhadores, que fazem a reparação. Estamos também a expandir-nos para o Curdistão, dando apoio a empresas de petróleo, e acabámos de ganhar contratos com a NATO no Mali.” Para António Gonçalves, “a logística é como gerir uma casa de família. Tem de se pensar de A a Z: o transporte, a gestão de stocks, o fornecimento de água e de alimentos, a lavagem da roupa…” É todo um trabalho nos bastidores prestado a missões militares, empresariais ou científicas, mas não a refugiados. “Não fazemos disso um negócio. Há muitas ONGs envolvidas, com agendas políticas que se misturam com agendas humanitárias. Não queremos estar expostos para não sermos joguete de interesses políticos, mas quando há desastres naturais, como os terramotos do Haiti, do Paquistão, ou o tsunami do Sudeste Asiático, estamos presentes.” Ajudar a minimizar a dor “é o lado bom desta atividade”, diz ainda o gestor, que há muito se habituou a lidar com o horror e com o medo que assolam os seus dias. “Frequentemente, corro risco de vida. Não temos seguranças, temos amigos. Nas áreas que são oficialmente perigosas, os nossos funcionários deslocam-se com escolta da ONU. Nas áreas que não são oficialmente perigosas, mas que são sempre perigosas [risos], desenvolvemos uma atividade de relações públicas. Não usamos armas. Relacionamo-nos com as populações, tentamos desenvolver as economias locais e fazemos amigos”, afirma.
MATEMÁTICA NA DIÁSPORA
António Gonçalves pertence à primeira geração com formação superior que, depois do 25 de abril, fez carreira fora de Portugal. “Sinto-me responsável por ser português e ser líder de empresas, quando há tão poucos portugueses na minha atividade”, diz. Há cerca de um ano, juntou-se ao Conselho da Diáspora, que reúne os portugueses que alcançaram “mérito, talento e influência” noutros países, em áreas como a cultura, a economia, a ciência e a cidadania, e que estejam interessados em pôr esse conhecimento ao serviço do País. O contributo deste gestor assenta num projeto de reforço do ensino da Matemática nas escolas nacionais, de uma forma mais prática e mais lúdica, à semelhança do que se faz em França, com bons resultados. A partir do Mónaco, onde tem a sua base, ou de um dos locais remotos onde as frequentes viagens de trabalho o levam, António Gonçalves vê Portugal como um País que nos últimos anos “se modernizou muito”. “Estou impressionado com os jovens portugueses que conheci no Dubai ou no Sul de França. Quando regressarem, vão ser mais eficazes do que a minha geração.” Para o gestor, “as escolas estão melhores, as empresas estão a internacionalizar-se mais. Há um lado negativo, da politiquice, mas também há boas políticas. A escolha do País para sede da rede Aga Khan é um exemplo do Portugal para o qual os meus filhos querem vir.” Para uma vida menos radical, certamente.

Por Visão, Agosto 2017